quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Márcia Regina C. Farias - Poesias

Um tempo parado

Um instante suspenso.
Imenso nada onde nada acontece.
Estremece a alma – cortina opaca,
e é tão fraca a luz que a aura emite
que permite a densidão de sombras: avançam
e lançam por tudo um palor tão estranho!
Tamanho é o momento, o instante parado,
que brado nenhum alcança a garganta.
Nada adianta qualquer atitude
que mude, altere, o que está definido,
tudo contido no impossível segundo
em que o mundo num todo cessou de pulsar.
Ficar tudo imóvel, em silêncio, vazio,
nem frio nem calor nem luz nem escuro,
- é puro exercício, é teste de/mente,
e somente por isso se tenta entender
o poder in/tangível que a tudo domina
e fascina o instante imóvel no ar.
Não pensar, não sofrer, não ser nada,
em fragmentada luz se dissolver.
Viver este instante em compasso bem lento,
(e ter do momento imprecisa noção)
é a visão mais correta, o jeito, o remédio:
no epicentro do tédio encontrar solução.

Sementeira

Tempo de semear, tempo de colher.
Se o semear não foi bem feito,
haverá jeito de re-semear?
Não foi dor que plantei, foi esperança
e em bonança quis colher amor.
Plantei espinhos. Não sabia que os plantava:
esperava rosas florirem meus caminhos.
Onde busquei uma semente inútil
que tornou fútil o que semeei?
Foi nociva semente em seara errada?
Ou foi plantada em terra improdutiva?
Se plantei certo, mas em tempo errado,
do semeado enganos colherei?
Brotou na claridade tal semeadura
ou foi em noite escura que medrou?
Certeza não há que a seara foi negante..
-Quem me garante que a semente era má?
O que colherei, se minhas sementes
deram tão diferentes do que plantei?
...
Embora imperfeita a forma de arar,
- é tempo de ceifar, tempo de colheita.


Canção outonal

O sol se derramando na grama
com jeito de descuido: pálida chama
ébria de luz. É calma a tarde de outono.
Um salgueiro se debruça em abandono
no lago, a água mansa refletindo a flama
brônzea do plátano quase nu. A alfama
dos pinheiros revelada em seu sono
verde, e o céu acima, muito azul. Dono
das cores e do mundo sou, o drama
da vida esquecido. Deito em cama
de folhas, corôo nuvens num trono
flocado. Agora sou rei a reinar
no espaço, palhaço a pensar na fama.

Ao meu redor, como num sortilégio,
o bosque emudece, silente. Sacrilégio
o mais leve sussurrar ! Uma luz vagabunda
envolve tudo. Leve fragrância inunda
o ar: cheira a pinho, à terra. O régio
aroma de flores, o acre odor de capim, o privilégio
de aspirar o outono é meu. Vejo a corcunda
de um monte ao longe, envolto em funda
névoa feiticeira – o monte é mágico. O tédio
não existe, apenas o prazer, o assédio
brincalhão de aves em revoada, que redunda
em outro silêncio, outra calma, outro pensar,
levando ao coração a paz profunda.

(...e a sombra do sol na água fria...)

Ode a uma rosa amarela

Era uma rosa amarela
luminosa em sua cor.
Reflexo do sol, a florse
debruçava no espelho
trêmulo de murmurante regato.
Junquilhos perfumados
inclinavam verdes caules
na vária grama orvalhada:
embriaguez de aromas.

Quando o dia se fez noite
a lua veio, brilhante,
envolvendo a rosa amarela
numa redoma de prata.
Um vagalume pirata
brincou com o sono dela
- brilho de luz e cristal.
O junquilho suspirou,
recolhendo seu perfume.
Banhou-se o campo de lua.

De mannhãzinha: crua brisa,
soprando em total ciúme
da rosa tão pura e bela,
suas pétalas agitou.
A flor se abriu em carícia
- pensando ser sopro de amor...
A brisa virou aragem,
vento forte, ventania,
sopro de morte na grama,
nos junquilhos, na roseira.

O terno caule da rosa
vergou, pendendo à mingua.
Na manhã escurecida
a língua fria da chuva
lambeu o talo ferido
daquela rosa amarela,
deslustrando sua cor.
Suspirou a flor inteira
e nessa morte se entregou.

...Mas se entregou por amor.

Luz no mar

Veleiro deslizando manso
no verde mar em que descanso
o coração. A noite aparece
na tarde que empalidece
ainda envolta em mil cores:
azul, e ouro, estertores
rosas, larga faixa amarela,
bronze, vermelho...É uma tela
o anoitecer. Desponta a lua
alta no marinho céu, toda nua,
despida dos véus de esgarçadas
nuvens, a esmo,no ar jogadas
- como se joga uma camisola
antes do amor. Sensual marola
eriça o mar e, preguiçosa,
vem lamber a areia, desejosa
de possuir a terra ainda quente.
O horizonte se tinge de repente
de gris e prata, e se confrange
- punhado de luz. A brisa tange
o veleiro: porto, abrigo, cais,
escunas nos litorais.


Eu sou assim

Eu sou assim:
enluarada
Entardecida
luz matinal.
Sou insensata
intimorata
e racional.
Irrevelada,
eu me desnudo
a quem me queira
compreender.
Dual e múltipla,
porto tristezas
trago incertezas
sendo verdade.
Pantera, gata,
macia fera,
contida, vária,
hereditária,
orquídea, cardo,
yang, yin,
todas eu sou
- e sou assim!


Poesias publicadas no seu livro “O inververso no espelho” – Ed. Metrópole , Porto Alegre,1ª Edição 1993

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